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Conto de Natal

             Era noite, noite silenciosa e ela estava escura e fria, às vezes um vento gelado batia pelas faces dos transeuntes. Garoava. A chuva fina molhava o asfalto que, brilhante e negro, refletia como um espelho as luzes dos enfeites de Natal. Brilhavam os vermelhos e verdes de semáforos, faróis amarelos dos carros, luzes azuis das lampadinhas, brilhos encantadores e sombrios. As pessoas caminhavam agitadas e com pressa pela estranhamente iluminada e escura avenida de São Paulo, a mais conhecida, a mais querida. Uns escondiam-se sob guarda-chuvas, outros enfrentavam a triste garoa desabridamente, pois ela era leve. Algumas pessoas paravam diante dos enfeites natalinos para tirarem fotografia entre risos alegres e banais. A garoa não importava tanto, ela apenas emprestava mais reflexos, mais luz e um ar triste e melancólico àquela noite.

           Em contraste, as ruas paralelas pareciam ficar ainda mais obscurecidas. E, se parecia seguro passear pela grande avenida, caminhava-se um pouco mais apressado por estas vias. Nelas um vulto sempre parecia brotar do nada, das trevas, e nestes momentos era como se elas pudessem ligeiramente alcançar a todos.

             Deslizando pela rua escura, Carlos, o careca, como o chamavam os amigos, caminhava seguro. Pernas curtas, joelhos defletidos em passos alongados e abertos, o peito à frente, as mãos enfiadas nos bolsos da jaqueta de couro, gasto e puído, calças jeans cobertas de rasgos e rotas. Coturnos surrados de couro pareciam cadenciar sua caminhada. Os olhos pequenos, enfiados num crânio forte e bem desenhado, no qual se destacavam a testa e o nariz, observavam os mais leves movimentos que ocorriam na rua. Carros passavam céleres, buzinas para os que retardavam o trânsito. Casais de namorados que caminhavam abraçadinhos, uns correndo da garoa, outros esquecendo-se dela. Via homens maduros passando sem pressa, senhoras olhando assustadas para todos os lados, caminhando lerdas, se bem que, apressadas. Era véspera de Natal. Na rua os que passavam. Na rua os solitários. Na rua a insuportável melancolia do dia feliz que se aproximava.

               Carlos estava angustiado, e por alguma razão qualquer, cheio de raiva, cheio de fúria. Os seus passos eram pesados e seus olhos pareciam estar em busca de algo ou alguém. Ele era apenas emoção, não conseguia refletir bem sobre o porquê de tanta angústia e raiva, que a cada passo parecia transformar-se num ódio que precisava ser colocado pra fora. Perdido em seus pensamentos quase esbarrou com um rapaz que caminhava em sua direção. O rapaz titubeou, inseguro sobre que direção tomar, Carlos fez o mesmo, um sorriso brotou simpático no jovem que estava à sua frente. Carlos olhou-o, ali estava uma figura esguia e magra, roupa escura de inverno, cachecol no pescoço, rosto bonito, traços finos e cheios de luz, cabelos encaracolados e quase loiros, delicado... Reconheceu o que procurava, olhou-o de forma dura e fria, o outro, desconcertado, pensou enfim em desviar-se. Tudo ocorreu num átimo de momento.

            Carlos puxou-o pelo braço e não deixou com que desviasse e nem partisse. Desferiu-lhe um soco certeiro na cabeça, e outro, e outro, enquanto o mantinha firmemente seguro. O jovem tentava se desvencilhar da mão que o prendia como se fosse um tentáculo de ferro, lutou e conseguiu. Correu.

              Carlos o perseguiu. Voava atrás dos outro pela rua escura. O rapaz começou a gritar por socorro. O infeliz tinha adentrado a avenida Paulista, procurando segurança, mas aquele trecho estava estranhamente vazio. Ouvindo os gritos, Carlos num último esforço conseguiu alcançá-lo. Puxou-o pelas costas com tal violência que o jogou no chão. Não esperou reação. Começou a chutá-lo. Estava cheio de ódio, mas seu esforço não era sem direção. Chutava o rapazote nos rins, desejava esmagá-los. Abaixou-se um pouco e socou o rosto dele até calar os seus gritos e gemidos de dor. Quando quase o havia desacordado, chutou-o na cabeça várias vezes, com toda força que possuía em si. Carlos ao menos sentia seu corpo, ele todo era uma energia viva que se manifestava. O rapaz inerte parecia não mais reagir.

               Então, como se estivesse furioso com seu brinquedo que não mais desejava participar da diversão, Carlos pisou várias vezes fortemente aquele rosto que fora bonito, até que ele não fosse mais do que uma massa de sangue e carne pegajosos. Sua fúria cega era tanta que nem viu as pessoas se aproximarem estarrecidas e chocadas com a brutalidade. Mesmo assim, ninguém se atreveu a tocá-lo, pois ele nem ao menos parecia humano. Apenas começaram a gritar “Socorro, polícia!”. A este som Carlos atendeu e entendeu. Começou a sua fuga pelas ruas paralelas da avenida. Alguns, que antes não foram nada heróicos, pareciam persegui-lo, mas despistou-os a todos. Corria mais do que o vento. O coração parecia que ia sair-lhe pela boca, quase lhe rompia o peito. As mãos formigavam, o rosto formigava. Uma estranha felicidade, medo e alívio o invadiam. Era como se pudesse tudo. Mas precisava continuar fugindo. Correu muito, correu ziguezagueando pelos quarteirões. Viu uma poça d’água na sarjeta e pulou nelas várias vezes, molhava-se com a água limpa que ali se acumulara, esfregava os coturnos pelo chão, para limpar o sangue que neles ficara grudado.

                Ouviu de longe uma voz dizendo “Ele foi por ali”, era o sinal para continuar sua fuga. Agora ele precisava sumir, correu então para a Avenida Paulista, poucos metros antes de chegar encurtou os passos e começou a andar, como se simplesmente estivesse passeando. Instintivamente olhou para as mãos para verificar se nelas não sobrara vestígio. Não, estavam limpas. O coração estava ainda acelerado, mas a fuga e a chance de ser pego faziam parte deste ritual que o aliviava. Agora, buscava confundir-se entre as pessoas que por ali transitavam, caminhava calmo, com passos medidos. Tentava colocar no rosto um leve sorriso, como se pudesse participar da alegria daquela noite. Parou entre as pessoas que se fotografavam em frente aos arranjos natalinos. Chegou até mesmo a tirar uma foto de um grupo que lhe pedira a gentileza, “claro, pois não” parecia um homem doce e educado.

              Viu os carros da polícia passarem na direção oposta. Sirenes ligadas, as luzes vermelhas brilhando no asfalto, seguindo de perto, o carro de socorro. Carlos esboçou um sorriso cínico, mas ele não era tolo, não poderia arriscar-se mais. Continuou sua caminhada pela avenida, agora um pouco mais rápido, poderia ser descoberto. Por alguma razão as pessoas pareciam olhá-lo. Era como se todas soubessem, aos poucos o medo ia dominando-o. Subitamente se deparou com uma igreja. Imensa, arquitetura clássica, parecendo de pedra. Do grande portal vinha uma luz bruxuleante e terna, amarela e convidativa, a luz dourada contrastava com as trevas de fora. Ele relutou por um instante, pessoas paradas à porta, a igreja estava lotada. Achou estranho, “missa a esta hora?”, quase meia-noite... Caminhou lento em direção à entrada. Subiu desajeitado degrau por degrau, como se um grande peso enfim o abatesse, olhava para as costas dos que estavam à porta, e mesmo que eles não o vissem sentiu-se um pouco constrangido. Ouvia sem ouvir as palavras do padre. Foi entrando. Com gestos curtos e educados, abriu caminho e foi se aproximando dos bancos. Segurança e proteção.

               A igreja estava lotada, decidiu ficar em pé, cercado de pessoas contritas. Não ouviu mais a voz do padre, apenas um murmúrio de vozes, aquele burburinho comum da multidão quando aguarda um acontecimento. Carlos ficou apreensivo. As luzes se apagaram. Ele imediatamente olhou para as portas, delas vinha a luminosidade da rua, tranquilizou-se. Aguardou pressuroso para saber o que ocorria. As pessoas em volta, as vozes sussurradas, o escuro, as trevas haviam envolvido tudo. Era um momento angustiante, parecia que não se acenderiam jamais as luzes. Então houve silêncio, ninguém mais murmurava. Ninguém mais se ajeitava em seus lugares. Um terrível e pesado silêncio. Todos esperavam. Mas pelo que esperavam? Perguntava-se. O som de um pequeno sino foi ouvido, e ele prolongava-se em sua nota única... esparramava-se pelas sombras, pelas pessoas. E aí, novamente o silêncio, depois de alguns instantes o coro começou a murmurar uma canção que Carlos não reconheceu, murmuravam baixinho, como se cochichassem nos ouvidos dos anjos, como se fosse uma canção de ninar, com o cuidado de embalar uma criança, preocupados em não despertá-la. O sininho fez-se ouvir longamente uma outra vez.

              As suas emoções ainda estavam em desalinho, então, alguma coisa dos gestos das pessoas se perdeu, no entanto, ele percebeu uma minúscula luzinha se acendendo bem à frente da nave da Igreja, e como se este fosse um sinal previamente combinado, enquanto o som do sininho podia ainda ser ouvido, pequenas luzinhas foram sendo acesas por cada um dos que estavam ali. Da primeira luzinha, veio o fogo que foi acendendo vela por vela, que eram seguras pelos fiéis. Carlos foi vendo o brilho, a luz, surgindo de entre as trevas, enquanto as notas da canção eram murmuradas. Olhava atônito para aquela cena, olhava para as costas das pessoas à sua frente, e então olhou para o lado e para baixo. Seu olhos se encontraram com os de uma doce senhora, cabelos branquinhos, magrinha, pequena, a face enrugada, mas a face banhada por uma suave luz que vinha das velas e daquela mesma que ela estava acendendo.

            O rosto dela refulgia banhado em pura luz, candura e ternura brotavam suaves das linhas da sua face vivida e terna. Ela acendia a sua velinha com outra, parecia concentrada em seu labor, aos poucos levantou a fronte e encontrou o olhar de Carlos que a vislumbrava. Ela sorriu-lhe cúmplice, como se tivesse surpreendido o menino arteiro que foi à Igreja despreparado e lhe estendeu a outra vela. Ele tomou-a inseguro, como se não soubesse o que fazer com aquilo. Mas havia tanto carinho e afeição naquele rosto carcomido pelos anos que não podia resistir-lhe, segurou a vela bruxuleante, enquanto o terceiro sinal do sino se ouvia pela nave principal. As pessoas pareciam dançar levemente, jogando seus corpos de um lado para o outro, mas eram as chamas que faziam suas silhuetas tremularem.

               O murmúrio do coro parecia haver crescido e silenciado de forma harmoniosa e como se houvesse uma cadência conhecida e esperada, as vozes titubeantes, fortes e fracas, entre leves tosses, começaram a entoar uma canção, como que procurando o tom para se afinarem. Carlos sentiu-se um pouco surpreso e encurralado com aquilo, tudo parecia ter sido preparado para ele. Havia como que uma vibração de amor à sua volta, uma vibração triste e sagrada... Era como se houvesse voltado a um perdido tempo de infância, sentiu-se pequenino e emocionado quando entendeu a primeira palavra da cantiga, que subia dolorosa, triste e festiva aos céus... Era um menino novamente a ouvir “Noite feliz... noite feliz... Oh, Senhor, Deus de amor... pobrezinho nasceu em Belém...” Imediatamente seus olhos umedeceram... Ele todo arrepiava de emoção, e a sensação parecia percorrer seu corpo todo e num mesmo instante voltar-lhe às faces que ele agora sentia quentes e vermelhas. Olhou confuso para os lados. E a senhorinha novamente sentiu sua carência, e delicada, respeitosa, tocou-lhe a mão e a tomou, enquanto a sua voz ia se elevando... soprano e bela, transmitindo-lhe a sua fé através daquele reconfortante carinho.

               Uma lágrima emocionada desceu sorrateira pela face do triste Carlos. Ele se esforçou, se esforçou... outra lágrima rompeu sua dor... E enquanto a música se elevava em uma única voz aos céus, ele tentava cantar as palavras que toscamente se lembrava, até que o pranto não pôde mais ser contido e ele se encurvou de pura dor e desespero, chorando... A boa velhinha, como se soubesse de tudo, nada perguntou e envolveu aquele homem imenso num abraço reconfortante e bom. Os circunstantes olharam como quem não entendiam entendendo. Carlos praticamente se ajoelhou, ficou pequenininho, diminuto perto daquela bondosa mulher, diminuto perto da canção que trazia de volta a pureza e a inocência há muito tempo perdidas.

              Em meio ao abraço, a senhora lhe disse, confortadora como se fosse o próprio deus: “Filho, calma, é misericórdia o que eu quero... disse Jesus, vinde a mim todos vós que estais sobrecarregados que eu vos aliviarei, calma... Deixa Deus entrar, não tenha vergonha... não tenha medo, eu estou aqui”.

            Em poucos instantes a música silenciou e se ouviu a voz do padre sussurrar como se fosse uma promessa de paz e luz “não podemos falar do filho, sem falar da mãe... Cantem comigo” E assim, com voz forte e ao mesmo tempo cheia de emoção e amor fraterno se ouviu uma antiga canção que Carlos conhecia bem... “Mãezinha do céu... eu não sei rezar... só quero te dizer, que quero te amar... azul é teu manto, branco é teu véu...mãezinha eu quero te ver lá no céu...” e as palavras e emoções se repetiram...

              Enquanto Carlos lembrava-se da mãe, da ausência, da dor, da distância, do tempo, da solidão, da sua violência com a infortunada que lhe fizera vir ao mundo, da sua surdez para com os seus conselhos. Nunca sentira tanta dor, alívio, arrependimento e alegria ao mesmo tempo. Num último momento o padre disse: “Saudai-vos em Cristo”. Todos passaram a se apertarem as mãos e alguns a efetivamente se abraçarem, dizendo “a paz de Cristo”. Dona Carolina, este era seu nome, abraçou Carlos uma segunda vez, beijou-o na face, olhou-o nos olhos e pronunciou entre fraterna e cúmplice, aquela cumplicidade de quem viveu todas as dores possíveis de serem suportadas e cumprimentou-o: “A paz de Cristo...” E ele... Entre receoso e emocionado a abraçou de volta respondendo: “a paz de Cristo...”

             O sininho se fez ouvir novamente, as velas apagarem-se no mesmo silêncio no qual haviam sido acesas... E o padre anunciou sério, ao mesmo tempo num tom feliz: “Jesus nasceu!” Era o sinal para o coro da Igreja irromper com o canto de “Aleluia!” Alegria e paz envolveram Carlos. Ele se sentia tão novo, tão outro, como se nunca houvera sido mais do que uma criança sofredora procurando um carinho, um abraço. Enquanto subiam e desciam as notas de júbilo da “Aleluia”, o padre falou uma última vez, estendendo as mãos para a multidão e abençoando: “Vão em paz e que o Senhor vos acompanhe...” “ Em nome do pai, do filho e do Espírito Santo...” Ao que todos responderam “Amém”, o órgão da Igreja tocou então uma música jubilosa. Carlos envolveu a senhorinha num abraço, cheio de vida e luz, conseguindo murmurar ao seu ouvido “obrigado”. Ela nada respondeu, apenas passou a mão pela cabeça dele, como se fosse apenas mais um menino levado, dos muitos que conhecera. Carlos a olhava com carinho, e pensava que para ela parecia tão fácil amar.

           Ele desceu trôpego os degraus da Igreja, enquanto os fiéis o envolviam em alegre algaravia. Num instante estava novamente caminhando solitário pelas ruas, pela avenida. A chuvinha fina havia enfim parado. Ele ouvia as buzinas dos carros, as luzes espelhadas no asfalto, tudo lhe parecia estranhamente novo, e ao mesmo tempo, parecia estar vendo e ouvindo pela primeira vez naquele dia. Foi caminhando lento, pé-ante-pé pela avenida, olhando para a decoração do Natal, os anjos nas fachadas, as guirlandas, as lampadinhas piscando, o Papai Noel imenso deitado acima da avenida, com um monte e presentes. Era Natal enfim.

            Em poucos instantes ouviu fogos se queimarem, espocarem pelos céus, e chegou até mesmo a pensar como isso não combinava com aquele momento sagrado, momento santo. Preferia dentro de si um silêncio respeitoso, enquanto o vento frio enregelava as suas faces. Caminhou, caminhou, e seus passos não eram nem soturnos, nem arrependidos, sentia-se um sujeito bom que reencontrara-se consigo mesmo. Na sua mente passavam em torvelinho as imagens da mãe, do pai e dos irmãos e de como os havia desprezado. De como havia escolhido outro caminho, um caminho que os deixara longe, à distância. Sentia apenas agora, como os erros deles, aqueles pequenos erros que ele achava importantes, eram apenas os mesmos erros que ele cometia e que, enfim, todos eram iguais naquilo que mais importava, na sua humanidade.

            Como precisava pensar, Carlos viu-se voltando para trás e refazendo seus passos pela imensa avenida, quase meia hora havia se passado entre sair da Igreja e novamente reencontrá-la às escuras. Um pouco distante olhou para o velho prédio, sua estrutura imitando um templo grego, suas grades externas para impedir os criminosos e cretinos vândalos. As trevas desciam densas. Via à frente uma figura solitária. Que aos poucos foi ficando mais clara conforme se aproximava. De braços cruzados e aparentando ansiedade, a mesma senhorinha que o havia amparado parecia estar á espera de alguém. Sozinha, em meio à escuridão semi-iluminada da avenida, diante da Casa de deus, aquela que o havia tanto reconfortado, abraçava-se em meio à sua pobre malha preta. Ele aproximou-se. Ela o reconheceu e sorriu. Ele perguntou: “A senhora está sozinha? Esperando alguém?” Ela, apreensiva, respondeu-lhe: “sim, Estou esperando meu filho que ficou de vir à missa comigo, mas se atrasou e agora ele não chega...”

          Sentindo que poderia retribuir todo o conforto que recebera, Carlos, disse-lhe carinhoso: “Mas a senhora não pode ficar aqui sozinha... é perigoso, posso acompanhá-la até sua casa?” Por um instante ela titubeou, mas respondeu, “Ah, meu filho, estou preocupada, mas não posso ficar mais tempo aqui esperando, se puder me acompanhar eu agradeceria muito.”

            Os dois foram caminhando no sentido contrário do qual ele havia caminhado até então, a direção na qual instintivamente ele não havia ido. Dona Carolina falava de amenidades, do tempo, da aposentadoria que era pouca, do filho que não viera buscá-la mas que a ajudava e praticamente mantinha a casa. Ela enchia o peito de orgulho, e repetia ás vezes, “sabe, ele é formado em administração?!” Em um momento ela deu o braço para Carlos, ele meio sem saber o que fazer... Ela então o dirigiu para que ele a amparasse, como se fazia antigamente. Caminhavam lentos. E, dona Carolina, animou-se enfim, e disse: “Sabe, meu filho é gay! Sofri muito quando ele me disse.” “Ah, tem muita safadeza neste mundo” disse Carlos, tentando consolá-la. Ela corrigiu-o “Não, não! Meu filho é um bom rapaz, sempre foi!” E tomando ar afirmou sériamente: “Rapaz cônscio dos seus deveres, das suas responsabilidades. Jamais me deu uma tristeza se quer. Quando ele me falou o que ele sofria, e como era triste por não me poder fazer avó, eu sofri por alguns momentos! Mas, se havia alguém que havia feito tudo para fazer as coisas certas, este alguém era meu filho, e se não deu, eu sabia que não era por falta de tentar. Então eu fiz a minha parte. Aceitei ele como ele é, por que acima de qualquer coisa é meu filho”.

             Honestamente emocionado, Carlos respondeu-lhe: “Nossa, que coisa bonita que a senhora fez, nem todo mundo consegue pensar assim...” E dona Carolina respondeu-lhe convicta da verdade: “Todos somos filhos de Deus e ele não faz as coisas por acaso... Se ele quis que fosse assim, assim será!”

               Aos poucos, com passos lentos e medidos, por causa da idade e fragilidade da senhora, eles vão vendo um pequeno grupo de pessoas que se acumulava ainda pela Avenida Paulista. A ambulância vermelha parada, três viaturas policiais paradas, homens fardados em torno de algo que não poderia ser visto e os curiosos circunstantes espiando o que houve. Dona Carolina, fez o sinal da cruz e acabou comentando: “Deus me livre, que povo curioso, coisa feia, não sabem nem respeitar a dor dos outros”. Foram passando devagar pelo fato ocorrido, um corpo jazia no chão. Vozes alardeavam o ocorrido, um “Gay morto por um skinhead”, entre os vários comentários um circunstante fala: “Gay não! Gabriel era o nome do cara!”

               Um mal estar súbito se abateu sobre a frágil senhora. Ela parou um instante. Carlos chega a perguntar: “O que foi”, ela respirou e respondeu, “nada meu filho, apenas o nome do morto é o mesmo do meu menino”. Andam poucos passos para além. E em meio à discussão dos circunstantes se ele era gay, viado ou Gabriel, um policial começa a afastar as pessoas e indignado fala em voz alta: “Bando de babacas! Eu quero respeito aqui! Nem gay, nem viado! Gabriel Assunção Correia! Este é o nome dele!” o digno policial ainda foi corrigido por um engraçadinho: “É, não. Era!”

              Dona Carolina segurou mais fortemente nos braço de Carlos e parou. Ficou estática, palidez cadavérica cobriu seu rosto. Ela enregelou-se viva. Recusava-se a acreditar no que ouvira. Nomes e sobrenomes comuns, qualquer um poderia ser, deu mais um passo, segurou novamente com força o braço de Carlos. Largou-o. Ele apenas perguntou: “O que foi?” Enquanto ela voltou-se para trás e dirigiu-se lenta para o pequeno aglomerado de pessoas. Decidida, forte, cheia de luz, com a canção de Natal ainda a reverberar sobre sua cabeça. Ela nem viu que entreabriu espaço entre os curiosos afastando-os com as duas mãos, até chegar e vislumbrar o corpo jogado na calçada.

           Apesar dos policiais a tentarem afastar, ela jogou-se sobre o corpo e levantou o lençol respeitosamente jogado sobre ele. Um pouco longe, mas aproximando-se da cena, Carlos apenas ouviu os gritos: “Não! Não! Meu filho não!” O choro convulsivo, lembrando um uivo de dor. Ele sentiu um forte desejo de fugir, mas apenas prosseguiu em seus passos. A realidade do que fizera como que lhe voltara em preto e branco. Uma forte comoção o abalou, as lágrimas começaram a descer enquanto se aproximava. Um policial forte e barrigudo colocou o braço à sua frente como quem perguntasse o que ele fazia ali chorando, e ele apenas conseguiu responder: “sou amigo do morto”.

            Por um instante apenas, ele quis confessar: “Fui eu!” “Fui eu quem matou! Fui eu! Me levem embora daqui!” No chão, frio, molhado, refletindo as luzes do Natal, o corpo do jovem que ele matara e o desespero da mãe que o acolhera. Dona Carolina já se encontrava sentada ao chão. O corpo do filho, ensanguentado no colo. Cobria-o de lágrimas, como a mulher que cobrira os pés de Cristo com perfume. Recusava-se a acreditar na sua dor e indigência. Chorava amargamente. E clamava: “Meu Deus, que vou fazer sem meu filho?!” E entre soluços às vezes batia-lhe levemente na face dizendo: “Gabriel?! Gabriel?! Fala comigo...” “Quem foi o monstro que te matou, meu filho?! Fala pra mãezinha?! Fala!”

             Carlos, como se soubesse, pela primeira vez na vida o que fazer, ficou com ela, a amparou. Foi ao velório, chorou o morto como se fosse seu conhecido de muitos anos. Abraçou dona Carolina como se há muito a conhecesse. Dia 25 de dezembro foi um dia chuvoso e muito triste no qual enterraram Gabriel. Era nome de anjo, isso Carlos não conseguia esquecer. Matara, matara um anjo que cuidava de uma doce pessoa.

             A partir de então, dobrara o seu trabalho, passara a ter dois empregos, deixara de ganhar apenas para si e passou a ajudar Dona Carolina. Aos poucos ela o via como um filho amado que Deus enviara para substituir aquele que lhe fora tão tristemente roubado. E, assim foi por alguns anos. Até que ela morreu, de morte natural nos braços de Carlos, abençoando-o, sem jamais saber da verdade. Mas, para Carlos, isto não bastava. Após providenciar o enterro daquela que fora como uma segunda mãe, caminhou destemidamente até à polícia e enfim, entregou-se, enquanto parecia-lhe ouvir ainda a mesma cantiga, repetida inúmeras vezes em sua mente doente: “Noite feliz... Noite feliz! Oh, senhor, Deus de amor... pobrezinho nasceu em Belém... Eis na Lapa Jesus, nosso bem... dorme em paz, oh Jesus! Dorme em paz, oh Jesus!” Ao delegado, que estranhou o nobre gesto, ele apenas conseguiu responder: “Nenhum crime prescreve!”

Comentários

docerachel disse…
Esse é exatamente o mundo em que viviemos. Matamos por matar até quem deveríamos amar.

Lindo e comovente conto de Natal.

Continue escrevendo lindamente, querido.

Que teu novo ano seja cheio de realizações.

Abraço forte.
Luiz Vadico disse…
Obrigado pelo carinho da leitura, doce Rachel, é sempre bom ter alguém com quem partilhar. Sucesso ainda maior e merecido no próximo ano. Bjo

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