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O Conselho dos Anjos e as Férias do Senhor!

O Conselho dos Anjos - Grayel presidindo


           Em pleno século XVII, depois de milhares de anos de governança, cansado das disputas sangrentas entre Católicos e Protestantes, sem saber bem a quem dar razão, Deus se cansou. Exausto – e olhem que ele são três -, triplamente cansado, decidiu se ausentar um pouco. Convocou um Conselho, nele estavam todos os anjos conhecidos e os desconhecidos: Gabriel, Rafael, Uriel, Miguel, Hahahael, entre outros. Enfim, leitor, se você tivesse pego a moda dos anjos nos anos 90 saberia que não dá pra nomear tantos anjos e suas funções. O Conselho era quase um congresso, parlamentarista e obviamente sem corruptos. Era animado apenas por boas intenções e sobre o discutível entendimento do Plano Divino.
O Senhor disse que ficaria um breve tempo fora, e logo foi emendado por um anjo engraçadinho citando o Eclesiastes: “por que para ti mil anos são como um dia...” Deus olhou-o de cara feia e desconfiado, decidiu que a Virgem Maria iria ficar. Ela não iria participar do conselho, pois afinal não era anjo, mas de hora em hora – de acordo com o relógio divino – viria ver o que ocorria. Ainda informou o Senhor: “Apenas deixem os homens a si mesmos, eles farão o que é melhor, confiem na humanidade. Vigiem os maus, fomentem os bons!”
                A primeira sessão foi concorridíssima. Ficaram quase cinquenta anos (dos homens) discutindo sobre o que fariam. Notaram que após a Antiguidade Clássica pouca coisa de nota havia acontecido, apenas a invenção da prensa de Gutemberg se destacava. Acharam positivo pois a Bíblia foi impressa, lida em vários idiomas e as pessoas puderam entrar em contato direto com a palavra de Deus. Claro, anjo fala todos os idiomas naturalmente e não sabe dos problemas de tradução.
Uma coisa ficou decidida: acontecesse o que acontecesse o homem manteria seu livre arbítrio. Pois, se os anjos fizessem algo que Deus não gostasse, poderiam dizer o “homem escolheu”; diante disso ele se calava.
                Neste primeiro encontro os anjos mais conhecidos se destacaram, e apenas um e outro cuidadores de coisas estranhas como passagens, matas, e fontes d´agua tentaram dar um pitaco. Como medo de errar, estabeleceram que a lógica relacionada ao que conheciam do Plano Divino deveria prevalecer. E, discutindo a situação, notaram que os Estados Nacionais haviam se formado aos poucos, e Deus havia deixado... Sentiram ser positivo pois o que desejava o Senhor senão que os homens se amassem?! Primeiramente eles amariam o seu próximo, literalmente. Como bons representantes da ordem divina, olharam para as condições de vida dos homens na Terra e acharam que sofriam demais, e decidiram melhorá-la substancialmente.
                Enviaram emissários a todas as nações ocidentais – claro Deus só governa uma parte do planeta – e trataram de consolidar a divisão entre Católicos e Protestantes. Uma vez que já era um fato o melhor era fazer com que o prejuízo fosse o menor possível. Dotaram os Protestantes de um pragmatismo enervante, e os Católicos foram encaminhados para uma submissão ao Divino e a qualquer Senhor. Estabeleceram o “qualquer Senhor” por via das dúvidas, pois os homens poderiam se confundir.

Os Anjo tomando providências

                Finda essa primeira reunião, onde um Anjo de asas cinzentas pouco conhecido se destacara ativamente, foram cuidar de coisas mais importantes, como: o sono das crianças.
                Por alguma razão relativamente à pauta se esqueceram dos povos indígenas das Américas e dos escravos que lá chegavam. A Virgem Maria não. Ficou só matutando para ver no que poderia fazer em caso de necessidade. Ela também estava meio aborrecida por não tirar merecidas férias, e virginiana como é, preocupava-se com todos os detalhes, apenas para esfregar na cara da Santíssima Trindade o quanto teve de trabalhar na sua ausência. Resolveu aparecer para um jovem indígena, seu desejo era inculcar esperança nos sofredores americanos, pois Deus voltaria cedo ou tarde. Aí foi chamada de Virgem de Guadalupe. Não pôde se preocupar de todo com os escravos negros, pois havia um mercado de venda de seres humanos na África, logo, livre arbítrio; mas procurou consolar os aflitos.
                O século XVII transcorreu razoavelmente bem, a coisa começou a pegar quando um dos Estados Nacionais chamado Inglaterra atirou-se ao mar para fazer comércio custasse quanto custasse. Diante dos esforços diligentes dos monarcas ingleses, os anjos convocaram uma nova assembleia, pois pensavam que tanto esforço deveria ser compensado. Decidiram nessa reunião extraordinária, que os homens dos campos ingleses seriam mais uteis nas cidades, e determinaram que Senhores malvados os expulsassem pouco a pouco das suas terras. Assim, liberados de trabalharem na roça poderiam trabalhar nas manufaturas e ajudarem os seus irmãos nacionais. Isso foi também útil para terminar com as várias brigas entre os Britânicos por causa da leitura que fizeram da Bíblia em inglês.
Notaram os anjos que a língua inglesa era meio pobre de recursos literários e que isso não ajudava uma boa compreensão da palavra de Deus. Então, melhor seria mantê-los ocupados trabalhando. E, para garantir bastante mão de obra, para não dizer que cansaram de ver a fome no planeta, inspiraram novas ferramentas e técnicas agrícolas, assim haveria mais comida, mais gente gordinha e mais filhos para trabalharem nas manufaturas.
                Depois de muito discutirem, pois afinal não eram sábios como Deus, perceberam que não poderiam saber e nem vigiar tudo, e precisavam de alguém efetivamente colocado entre os homens. Chamaram um gênio, não um anjo, o Progresso. Era um ser pouco conhecido, pois Deus o havia criado, e por alguma razão deixara-o encostado sem muito trabalho. O Progresso era perfeito, pois tinha uma visão otimista da vida, encantaria os homens e estaria sempre sugerindo novas idéias para melhorar as suas vida. Sempre melhorar a vida humana, pois afinal, não era possível admitir que Deus desejasse o sofrimento. A idéia foi novamente do anjo de asas cinzentas, cujo nome ninguém perguntava, afinal, era anjo, tinha asas e isso bastava. Para simplificar o chamaremos de Grayel, Gray cinza em inglês e El de anjo, afinal todos seus nomes terminam em El. Cinzel, é um instrumento de escultura, por isso preferimos a versão Britânica do nome.
                Cheio de força de vontade, não desejando perder sua grande chance, Progresso foi imediatamente para a Terra. Como um típico ser Divino, estava recheado de virtudes: trabalho, diligência, disciplina, ordem, austeridade e otimismo. Verificou que os Estados Nacionais poderiam ser melhorados se os industriais e comerciantes chegassem ao poder, pois isso aumentaria o contato entre todos os seres humanos. Assoprou idéias nas cabeças de alguns ingleses, franceses e alemães. Era tanta luz que estes homens foram chamados de Iluminados e participaram de um amplo movimento, chamado posteriormente de Iluminismo. Tão próximos do saber divino estavam que a palavra Liberdade foi a primeira falada por todos eles cada um no seu canto. Escreveram livros e mais livros sobre como ser livre, leis, regras, normas e o poder de discutir tudo.
                Progresso estava feliz e diante dos Iluministas resolveu ajudá-los a impulsionar uma disciplina prática, a ciência; ela ajudaria os homens a se desenvolver conforme as suas necessidades sem ter de dependerem tanto de anjos e de Deus, afinal. Como sabia que os homens tendiam para o mal, pois leu Immanuel Kant, que afirmava “o homem é um animal que tende para o racional” fez com que os homens recuperassem o pensamento de René Descartes que criou o Método Científico, desta forma o saber garantiria imparcialidade. Seria o uso que os homens dessem que os levaria ao bem ou ao mal.
                Ao ver como estes sofriam nas minas de mineração de carvão na Inglaterra, o gênio piedoso inspirou a criação de máquinas. Primeiro uma para bombear a agua das minas, e para isso inspirou a criação do motor a vapor; depois máquinas para ajudar as mulheres a fiar os tecidos. E, enfim, como o homem havia desde milhares de anos caminhado a pé sobre a terra ou maltratado animais para carrega-lo, decidiu que deveriam criar outra forma de transporte, e no início do século XIX surgiu o trem. Agora, tudo parecia ir bem. O trem serviu para transportar pessoas, mas principalmente mercadorias. As suas linhas esquartejaram o planeta aos poucos e todas elas terminavam num porto.
                Progresso fingiu não ver o banho de sangue que houve na Revolução Francesa. Afinal as idéias eram boas, os executores é que eram maus. Se seguissem o exemplo dos ingleses e dos americanos anglo-saxões, tudo teria sido mais simples. Mas, sabe como francês gosta de complicar. Grayel, alarmado com a situação interviu, e inspirou um jovem de nome Napoleão para colocar ordem nas coisas. Ele terminou com as disputas, reorganizou o estado francês, e altamente inspirado pelo progresso chegou a criar o ensino público gratuito. E, desta forma também criou uma nova categoria human, os ignorantes, analfabetos, iletrados. Progresso adorou o jovem e resolveu que este deveria espalhar suas idéias por toda a Europa. Mas, como os europeus tinham um pouco de dificuldade de entender a mensagem, Napoleão dominou todos e mandou que fizessem logo as reformas necessárias.
                Sangue por todos os lados, mas tudo bem. Depois de plantada a semente do Progresso o retorno ao passado era impossível. Além do mais, como criatura viva os homens se destinam à morte.
                A única coisa que os anjos e o Progresso não pareciam ter previsto é que há um descompasso entre o Tempo no qual os homens vivem e o Tempo no qual as coisas divinas transcorrem. Uma simples distração de uma hora ou duas, uma saída para o almoço numa galáxia próxima, e pronto, quando voltavam muita coisa tinha acontecido. Não entendiam como um ser ignorante como o homem podia agir tão rápido em direção ao mal atendendo a diretivas para o Bem. Ser Deus devia ser literalmente um inferno.
                E assim as diretrizes do Progresso fizeram maravilhas ao longo do século XIX, mas todas custaram muito caro aos seres humanos. A todas às discrepâncias à ordem divina os anjos responderam com medidas austeras de controle. A mais importante foi a criação do relógio, pois a partir dele os homens e a sua sociedade poderiam regrar-se. Hora de trabalhar, hora de folgar, hora de comer, hora de casar... Folgar demais poderia fazer com que pensamentos maldosos ocupassem a cabeça destas criaturas industriosas no mal, então, muitas horas de trabalho e pouco tempo pra ficar desocupado. Em outras palavras, Progresso e os anjos passaram aos homens a responsabilidade do controle. Era algo simples e isso os homens poderiam fazer.
                Depois de umas duas horas do tempo divino a Virgem veio a Terra para verificar como estavam as coisas e ficou horrorizada. Os doutos homens da ciência impuseram a verdade: o método cientifico questiona, verifica e prova os fenômenos. A verdade está na ciência. E todos eles questionavam a Igreja e Deus, conforme o lugar. Passaram a dizer como o mundo, as pessoas, as estrelas e o universo eram. E tinham como provar que diziam a verdade. Enquanto os representantes de Deus ficavam gritando, sem serem ouvidos, a palavra “fé”. Ridicularizaram as experiências místicas, cujo papel tinha sido guiar o homem a Deus a partir de uma via interior.
Vendo a triste situação das crianças e mulheres exploradas na indústria, as péssimas condições de vida e higiene nas cidades, ela tratou de aparecer para várias pessoas e conclama-las ao retorno ao caminho da fé. Grayel, ao invés de ajudá-la conformava-se em dizer-lhe que era inútil, pois ela deveria dar provas científicas da sua existência e que a experiência do sagrado estava sendo mais e mais abandonada pelos homens, e tudo era culpa deles, pois os anjos tudo tinham feito para leva-los ao Bem. Fez o que pôde, distribuiu consolo, esperança, fé, mas poucos estavam desejosos de acreditar. Acabou inspirando muitos homens e mulheres, e estes terminaram por criar a assistência social e os hospitais. Essa última iniciativa deu com os burros n’agua, pois a ciência tratou logo de dominar este espaço.
                Em desespero de causa ela buscou inspirar alguns homens para lutarem pela dignidade humana e estabelecerem uma relação de harmonia com o próximo, diminuindo a exploração e tentando deter a roda dentilhada da indústria.
Aí surgiram pensadores cristãos e não cristãos que se esforçaram muito. Acabaram sendo ridicularizados e chamados de Socialistas Utópicos. Mesmo sob a inspiração direta da Virgem, muitos não acreditavam em nada do Divino. Entre os inspirados Karl Marx, que acabou por desvendar o funcionamento da Economia, explicando como o Capitalismo e a Burguesia parasitavam o ser humano. Mas, este não era um bom médium, e ao invés de entender o que a Virgem disse, “tenham fé, Deus irá voltar” ele traduziu assim, “Tenham Fé, um dia o Proletariado irá governar”. Isso deu a ela certo desânimo, mas precisava deixar alguns minutos se passarem para ver no que isso iria dar. Precisava confiar um pouco no ser humano. Mesmo que alguns homens não acreditassem em Deus, importante eram suas iniciativas para o bem do seu semelhante.
                Depois de várias pequenas e médias guerras por entrepostos comerciais no mundo, e após o homem Britânico, inspirado pelo Progresso, ter firmemente acreditado que o fardo do homem branco era levar a civilização a todas as partes do mundo, iluminando a humanidade e terminando com culturas tribais ineficientes. E, para tanto tiveram de se sacrificar fazendo guerras e colônias. Depois do homem haver criado a fotografia, e no fim do século criado a fotografia em movimento, além de terem ficado viciados em imprimirem livros, jornais e panfletos; levando ao surgimento do romance de folhetim, que alheava o ser humano da realidade e o preenchia de sonhos que nem ao menos eram deles. Diante da pressão da indústria, a necessidade de mercados e matérias primas e a rivalidade entre os Estados Nacionais, pois cada um procurava apenas o seu próprio benefício, enfim, eclodiu a Primeira Grande Guerra entre os homens.
As razões? O Progresso. Grandes cidades precisavam ser mantidas, a economia necessitava andar, as pessoas precisavam de trabalho, a indústria precisava de pessoas, mercados e novas matérias primas. O positivo, libertaram os escravos décadas antes, não por que fossem bons, mas por que precisavam que se tornassem consumidores.
                Assim, o primeiro esforço da Virgem acabou por redundar no surgimento da Rússia Comunista, cheia de idéias, mas com a grande dificuldade de entender as pessoas. Até se pareciam com os anjos estes comunistas. Eram honestos em suas intenções, mas até aí, os ingleses também o eram.
O Progresso, que havia tanto inspirado os homens era glorificado por todos os lados e já havia se tornado um gênio cheio de soberba, estava fora de controle. Sentia-se Deus, que continuava de férias. Quando os homens matavam milhares na Guerra com metralhadoras, tanques e armas químicas, desculpava-se dizendo que “eles não se adaptaram às novas tecnologias”. O seu otimismo ao invés de iluminar, cegava a humanidade. Ele chegou mesmo a ver na experiência Russa mais uma mostra de progresso político e social.
                Durante a Primeira Guerra a assembleia de anjos se reuniu. Como sempre reclamando que mal tinham tempo para fazer suas tarefas, pois os homens eram muito rápidos, se fossem mais lentos entenderiam o funcionamento das Leis Divinas. Ah, sim, agora suas regras já eram “Leis Divinas”. Como o anjo que fora mais ativo durante dois séculos, Grayel foi alçado à presidência do Conselho. Era necessário que alguém experiente e conhecedor de todo o processo pudesse orientar os novos caminhos a serem trilhados.
                Pouco ouvida na assembleia, pois não era um anjo, a Virgem foi para a cidade de Fátima, e lá fez estragos. Até o Sol ela fez bailar tentando mudar o rumo das coisas, mas, nada. Já havia tentado antes em Lourdes, na França, onde apenas conseguiu estabelecer uma gruta com águas curativas. Deu-se por vencida durante alguns segundos divinos, e neste respirar virginal, chegou a Segunda Grande Guerra.
O Capitalismo havia levado os homens a uma grande crise, a Primeira Guerra os havia levado a outras crises... E, inspirado por Grayel, Adolph Hitler convocou sua nação ao progresso, exterminando os inimigos de Deus, os judeus que haviam matado o Senhor. E aproveitou para exterminar todos aqueles que não tinham utilidade social clara, como ciganos, homossexuais e deficientes físicos e mentais. Tinha intenções bastante antenadas com a suposta lógica divina angélica. Grandes áreas de terra para abrigar uma população que era incentivada a crescer e se desenvolver.
                O mundo não se uniu contra essas coisas, o mundo se uniu apenas para lutar contra uma nação que absorvia as outras e colocava em risco todo o Capitalismo ocidental, que era representado sobretudo por algo chamado Democracia. Política surgida após as férias de Deus. Ela deu o ar da graça na Revolução Americana e depois na Francesa. No entanto, no rescaldo da reação, os homens perceberam todos os absurdos a que tinham sido levados pelo gênio do Progresso. Este, por sua vez não se deu por vencido, ficava dizendo impropérios, do gênero “raça de ignorantes! Vocês não me compreendem!”
                Uma nação pouco expressiva no século XVII, pois eram apenas colônias, encerrou a Guerra com uma novidade, a bomba nuclear, o suprassumo de toda ciência. Morreram muitos japoneses, asiáticos orientais, isso não chegou a ser algo de monta para os anjos, pois afinal, Deus era ocidental. Os anjos, atônitos com o excesso de violência e crueldade fizeram nova assembléia. No entanto, mantiveram Grayel como seu líder. Apenas conseguiam repetir para si mesmos como o homem era perigoso, para si e para o mundo.
Chegou mesmo a surgir uma facção, liderada por Gabriel pela volta de Deus das férias. No entanto, a facção foi prontamente derrotada ao lembrarem-no que Deus mal havia saído dali. Se ele fosse humano, não teria nem adquirido ainda um bronzeado digno de nota. A Virgem, apenas assistia a tudo boquiaberta. Os Estados Unidos despontou como o novo grande Estado Nação e aos poucos eclipsou os Britânicos. Os Russos agora já eram Soviéticos, industriosos, socialistas e ateus. Afinal, diante disso tudo quem poderia recrimina-los, não é mesmo?!
                Grayel então observou como a divisão dos humanos entre Capitalismo e Comunismo era infinitamente melhor do que aquela que havia antes. Os Estados Nacionais originados sob os auspícios do Senhor acabaram por se mostrar pouco interessantes, belicosos e destrutivos. Agora haveria um equilíbrio apenas entre dois blocos, muito mais fácil de ser controlado pelos anjos do que um monte de nações. Os mais ignorantes e preguiçosos dos anjos foram prontamente concordando. Miguel, acostumado a batalhas, interviu: “Mas os homens podem se destruir facilmente agora!” A isso Grayel informou, “não deixaremos! Dois líderes para controlar é muito mais fácil do que vários!” dizia isso com um sorriso estranho nos lábios.
A assembleia, contra a vontade do seu líder, chamou o gênio do Progresso e o repreendeu. Ele reagiu mal à reprimenda e ficou sozinho a matutar sobre como teria novos poderes sobre os homens, pois havia gostado de exercer os atributos divinos.
                Grayel, chamou-o a parte e lhe sussurrou: “o seu tempo chegará novamente! Você apenas mudará de nome! Aguarde!” O gênio se conformou e se retirou por alguns minutos divinos para se restaurar e voltar a carga contra a humanidade, ou melhor a favor da humanidade; pois ele jamais admitiria que houvesse prejudicado alguém, não com tantas boas intenções.
                Nesta mesma Assembléia, a Virgem Maria, quebrando todas as regras pediu a palavra e protestou: “Vocês anjos estão indo longe demais, não foi isso que o Senhor pediu que fizessem! Homens e mulheres sofrem por todo o mundo! Fome, desespero, guerras, ambições desumanas dos governantes, falta de lucidez dos governados. Não é isso que o Senhor quer!”
                Grayel, respondeu-lhe: “Sem desrespeitá-la, minha senhora, devo dizer que nunca houve tanta gente sobre a terra para louvar a Deus! Quando ele saiu de férias, eram poucos milhões, hoje são mais de quatro bilhões! A senhora há de ignorar que ele adorará o coro de bilhões de devotos?! Uma boa parte razoavelmente alimentada, educada, trabalhando e servindo a uma causa maior...”
                Respondeu-lhe Maria: “E que causa maior será esta?! Os homens não acreditam mais em Deus, apenas na ciência e nas estatísticas científicas divulgadas pelos telejornais. Já não se preocupam com suas almas, apenas com seus empregos e quando possuem tempo desejam apenas gozar e gozar, por que depois voltarão a um inferno cotidiano. Não, não foi isso que Deus desejou para o homem!”
                “Ah, mas a Senhora não há de discordar de que ele disse: com o suor do teu rosto ganharás o fruto do teu trabalho?!” – disse-lhe de forma acintosa o anjo.
                “Não discordarei!” respondeu-lhe a Virgem e emendou: “Apenas lembrarei que ele estabeleceu um tempo para que todas as criaturas gastem em seu louvor. E que este louvor não é apenas para ele, mas para que o homem saiba que descende do divino! E posso dizer mais, os homens suavam menos na roça!”
                Cheio de soberba, Grayel afirmou: “Há discordâncias! Quando o Senhor saiu de férias não nos disse nada sobre o Tempo para o louvor, e nem sobre o que isso significava. Isto é coisa da imaginação típica das mulheres!” E a Virgem, ao se ver assim refutada, a partir de um típico argumento do século XIX nascido da pseudociência que declarava as mulheres degeneradas e histéricas precisou se calar por ser uma voz contra muitas.
                Desejando parecer liberal e caridoso, Grayel declarou que diante de todo o holocausto da Segunda Grande Guerra a humanidade deveria fazer uma reflexão consciencial e buscar mudanças positivas de comportamento. Estabeleceu também que as consequências do esforço de Progresso não poderiam ser desfeitas e que deveriam ser melhoradas. A humanidade do século XX era infinitamente melhor do que a do século XVII. Havia assistência social, maior numero de nascimentos, vida mais longa, resultados miraculosos da medicina, mais envolvimento entre os seres humanos do planeta e que fundamentalmente o Conselho dos Anjos deixara o mundo muito melhor do que quando Deus governava.
                E, como um anjo assustadoramente esperto, prevendo as guerras da Coréia e do Vietnã, foi logo preconizando: “Nos anos setenta virá uma nova forma de unir todos os seres humanos, ela se desenvolverá nas décadas de oitenta e noventa e se chamará Internet!”
                Maria, acompanhando o raciocínio, disse estupefata: “Não pode falar sério?!”
                “Falo sim!” Afirmou Grayel sem dúvidas. “Já nasceu quem irá tomar as medidas que dará novos rumos a toda a humanidade”. Assim se encerrou a assembleia, delicada para se dizer o mínimo.
                Após todo o  morticínio de várias guerrinhas, e sob a inspiração dedicada da Mãe de Deus, os movimentos sociais, que acabaram por fim originar o movimento hippie, para o seu horror, como previsto, surgiu uma rede de informações no início dos anos setenta que se alargou até os anos oitenta.
Então, Steve Jobs e Bill Gates fizeram as suas contribuições, o computador pessoal e o Windows. As comunicações massivas surgidas no século XIX agora davam a sua cartada final no plano divino. Sob os auspícios de Grayel a humanidade estava pronta para se conectar a um universo de informações constantes e em larga escala. E isso, em conformidade com o Plano Divino era bom, pois os homens se conheceriam e se uniriam cada vez mais... O Estado Nação perdeu sua razão de ser, pois uma nova humanidade se desejaria irmanada pelos fios da comunicação por todo o Globo. O Capitalismo já não precisava ser limitado e o Comunismo se deu por vencido sob circunstâncias históricas. Chamaram de circunstâncias históricas aquele espertinho plantado no Vaticano por Maria, João Paulo II. O que não se disse é que o gênio Progresso agora voltava com outro nome: Pós modernidade! E ele continuaria, cheio de boas intenções, levando a humanidade a outro patamar, que agora já é chamado de pós-humano.
                O espírito Pós-Moderno ampliou as comunicações e a elaboração de imagens em movimento, iniciada pelo Cinema cem anos antes. Os seres humanos passaram a cada vez mais a se identificar consigo mesmos e não com o divino. Claro, isso é um absurdo, por que em essência são divinos. As imagens que antes eram consideradas idolatria passaram a ser parte do cotidiano. Grayel tratou de manter os humanos maus ocupados com filmes, séries de TV, vídeo cassetes, e depois DVDs players. Fez com que seres humanos fossem levados ao status de Divas e Divos da Cultura Popular, e desta forma o homem não teria tempo para se dispersar em coisas ridículas como um encontro pessoal com Deus. E falando nisso, Grayel também havia feito surgir no interior dos Estados Unidos no século XIX um grande movimento d pregadores, cuja grande virtude era simplificar ao máximo as ordens divinas para os homens, e deste movimento simplificador e redutor, surgiu a Teologia da Prosperidade. Agora o homem poderia adorar o dinheiro e sentir-se amparado por Deus. O anjo estava satisfeito com tanto sucesso.
O tempo que em algum momento era próximo ao divino se tornou humano, e depois desumano. A ansiedade típica dos cidadãos não se compara com aquela dos camponeses do passado. Rendidos diante da pós-modernidade os homens já não conseguem tempo para louvar a Deus e nem para se louvarem como produtos da criação divina. Sentem-se apenas seres sociais determinados pelas tecnologias. E, como a se ressentirem de si mesmos e de tudo do que foram privados passaram a se abrigar num mundo virtual, cada vez mais distantes da sublimação do sofrimento e da busca pela plenitude espiritual. Os que a isso se dedicam são vistos, e se vêem como produtos do mercado. São entretenimento e se entretêm o tempo todo, essa sua razão primeva e final. Terminaram por criar um mundo dentro do mundo. No entanto, na perspectiva divina, “vós não sois do mundo”, e isso significava o dobro de dificuldade para despertar o homem para si e para o que havia de maior nele, a sua centelha divina.
Mas, como o Senhor Deus havia posto lá atrás no coração dos homens o anseio por algo maior, eles, apressados como sempre e escolhendo caminhos equivocados, mergulharam nas drogas, única forma de atingir outras realidades. Realidades mais suportáveis.
                Enfim, quando na última década os anjos novamente se reuniram em conselho, com a presença da Virgem, bem após a queda do Muro de Berlin e da União Soviética, eis que Deus voltou de surpresa de suas curtíssimas férias. Ao ver todos os anjos reunidos, e verificar quem estava liderando o plenário, o Senhor apenas disse contrafeito para Grayel: “Lúcifer, que fazes aí?!”
                “Ah, Senhor” respondeu “Só estava tentando me redimir!” desejando parecer humilde. O Senhor respondeu: “Se redimir?! Fazendo de Ratzinger Papa?! Produzindo a Paixão de Mel Gibson?!”
                “Ah, Senhor minhas intenções foram boas...” defendeu-se.
                “E agora?!” disse o Senhor, “Como faço para fazer os homens pararem de olhar para os celulares, como faço para fazer com que olhem para a beleza da vida que eu criei só para eles?!”
                Lúcifer, cheio de bom senso, afirmou: “Ah, Senhor, não desejas que eu instrua a Deus como agir, não é mesmo?!”
                Embasbacado, o Senhor voltou-se para a Virgem, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa já foi ouvindo: “E aí?! Como foram as férias? Estava bom com a outra?! Enquanto você se divertia fiquei aqui sozinha cuidando da casa... Mas, não se preocupe muito, não foi apenas Lúcifer que fez das suas, andei inspirando algumas mulheres a respeito do patriarcalismo... E antes que você me diga qualquer coisa, vou avisando: agora quem está de férias sou eu!”
                É leitor, durma-se com um barulho destes. A única coisa que sei, foi que o Senhor Deus mudou o Papa rapidinho, o resto ainda está por fazer.
               


Deus botando ordem na casa






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